Jogo de conversa

Instalação pública (imagem anterior à instalação)
Aço corten com pintura eletrostática
80x170cm
2025
Jogo de conversa
Texto crítico da curadora Daniela Avellar
Uma cadeira escolar vazia é posicionada em frente a outra cadeira escolar vazia. A cena está construída, mas é passível de ser, a cada novo olhar, reescrita e ressignificada. Narrar essa cena é, igualmente, um modo de reproduzi-la, o que faz das cadeiras vazias que se olham um palco performativo em permanente abertura. Abre-se uma polissemia de possíveis sentidos, sensações e interpretações dessa cena, a princípio pertencente a uma dimensão corriqueira e prosaica.
Diante de uma instalação, é preciso perguntar que tipo de espaço essa obra de arte produz ou como ela pode transformar o seu entorno. Além disso, é necessário refletir sobre como a obra é capaz de situar os visitantes, seus espectadores. E, por último, o que uma instalação pública mobiliza em termos éticos? Quais são os afetos implicados nessa situação?
Essas perguntas, mais do que introdutórias, servem como chave de leitura para Jogo de Conversa, trabalho de Carol Chediak, concebido pela artista enquanto uma obra que se manifesta como um convite à escuta e ao encontro. Seu gesto inaugural, como descrito anteriormente, é relativamente simples: as cadeiras, manufaturadas como réplicas das escolares, são colocadas frente a frente e ocupam o espaço público, uma rua na Gávea, no Rio de Janeiro, instaurando ali um campo de relação. Com isso, se instala algo próximo a um dispositivo de deslocamento espacial, social e simbólico, capaz de interrogar a aparente simplicidade do ato de sentar-se e conversar.
A obra está instalada entre duas escolas públicas, a Escola Municipal Manoel Cícero e a Escola Júlio de Castilhos, que completam, em 2025, o seu centenário. Essa escolha não é, portanto, fortuita: ao situar o trabalho entre instituições escolares, Chediak cria uma zona liminar entre o espaço formal de aprendizado e a cidade enquanto espaço de convivência. Há, evidentemente, um diálogo entre o dentro e o fora. Mais do que isso, público e privado se entremeiam, uma vez que a educação formal em questão é aquela que acontece dentro dos serviços públicos oferecidos à população, cenário de tanta precarização e, por outro lado, de tanto afeto.
A aparição do mobiliário na rua evoca ao menos duas coordenadas simbólicas: a educação enquanto valor coletivo, que nos transmite a importância da memória, da luta e das políticas públicas; e o corpo, aquele que senta, se acomoda, fala, escuta, olha. Aqui, ele é produtor e mediador dos saberes.
Não seria exagero dizer que as cadeiras também emulam, não obstante, uma cena buscada insistentemente diante de um tempo que não nos deixa, literalmente, parar. O excesso informacional, os estímulos visuais e, sobretudo, a alta demanda por uma performance de si nos deixam com a sensação de que o ócio, a espera, a hesitação e os momentos de pausa são quase proibidos. Esses são contornos não tão afastados das primeiras dimensões, nas quais falamos, em última instância, da necessidade de cultivar uma noção de comum, tão ausente na vida pública e nos frágeis laços comunitários.
A princípio, poderíamos elencar, em última instância, a dimensão do relacional como o significante imperativo aqui, na medida em que a proposta de Carol Chediak se alinha à tentativa de criação de sociabilidade e encontro. Mas é preciso ir além. Ao falar em comum, é necessário observar a situação criada pela artista como capaz de absorver graus de conflito e dissenso, elementos também constitutivos da vida democrática. Isso é dizer que os caminhos entre público e privado, dentro e fora, também presentes no arranjo que observamos, não se dão sem o reconhecimento das tensões que estruturam a vida social.
A materialidade utilizada na manufatura do mobiliário que compõe a instalação é um fator de importância, inclusive colaborando na construção das camadas simbólicas. O uso do aço corten faz aparecer uma face ainda mais volátil, por permitir uma superfície que reage às condições do ambiente e se modifica com o tempo.
As cadeiras que se olham mutuamente não indicam um diálogo idealizado. Em seu entorno existem as escolas, passam carros, transeuntes e produzem-se ruídos. Em alguma medida, essas cadeiras estão expostas a algo da ordem do que é frágil. Elas são movidas por uma série de instabilidades e podem ser deslocadas simbolicamente por uma polissemia de ideias. No título da obra lemos o termo “jogo”. Me parece razoável dizer que, em sua dinâmica, não se supõem vencedores ou perdedores, tampouco respostas prontas; é como se abríssemos uma espécie de escuta infinita, a única modulação capaz de abrir espaço para o conflito de ideias, tão necessário à vida comunitária.
As chamadas teorias não representacionais (TNR), formuladas por pensadores como Nigel Thrift, constituem uma preciosa contribuição para a geografia e surgem na interface dessa disciplina com a filosofia e os estudos culturais. Aqui, elas parecem uma boa chave conceitual para o que a obra de Carol Chediak tem de contingente. Ao deslocar o foco da representação para o fazer, do objeto para o acontecimento e da imagem para a experiência, essas teorias valorizam, a partir da ideia de construção do espaço relacional, os modos como os corpos se afetam e os gestos se repetem.
A partir dessa perspectiva, é possível dizer que Jogo de Conversa não mostra exatamente algo, mas faz emergir um campo de forças desde seu espaço, composto por distintos elementos (cadeiras, pessoas, materialidades, sons, linguagem...), que deve ser percebido por meio dos afetos. É, sim, uma homenagem às escolas centenárias, algo que permeia a vida de Carol Chediak como artista e como educadora, mas a obra faz das cadeiras que ali residem uma espécie de contra-monumento, que não tem a função somente de preservar, senão de renovar constantemente a necessidade de uma pedagogia que deve ser vivida e experienciada.
Nesse sentido, o mobiliário é vertido em dispositivo criador de uma coreografia efêmera, que informa partituras silenciosas e aberturas para seus futuros espectadores e visitantes. A cadeira, que é um objeto pedagógico por excelência, quando deslocada discursivamente por Carol Chediak, desprende-se de sua rigidez para se tornar uma mediadora no espaço continuamente construído pelas relações de afeto que ali se redesenham todos os dias, emprestando importantes improvisos simbólicos para uma educação pautada antes no encontro e na disponibilidade, do que na transmissão vertical dos saberes.
Jogo de Conversa é, assim, uma instalação que pressupõe um dinamismo, sem negar as assimetrias próprias do que pauta a cena pública, inspirando interrogações sobre o que podem os espaços, as materialidades, os objetos, as escutas e os silêncios em constante jogo de relação.
Daniela Avellar